A consanguinidade na filiação e o parentesco socioafetivo são descritos na legislação, conforme aduz o artigo 1593 do Código Civil:
“Art. 1593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.”
Sendo certo, que a expressão “outra origem” é o fundamento legal do chamado “parentesco socioafetivo”.
O jurista Alyrio Cavalieri, mencionando João Batista Villela acerca da tese da desbiologização da paternidade, esclarece que tal dispositivo legal, traduzindo a realidade social, pretende diminuir o mito da consanguinidade, deixando de lado a suprema importância da origem biológica do filho, para dar o devido valor à paternidade socialmente considerada, baseada em vínculos de afetividade e afinidade (Revista da EMERJ, no 10, volume 03, 2000, página 107).
Luiz Edson Fachin, in Da paternidade. Relação biológica e afetiva, Livraria Del Rey, 1996, página 33, menciona:
“… a verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria genética da descendência. Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de norma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de paternidade e uma relação psicoafetiva, aquele, enfim, que além de poder lhe emprestar o seu nome de família, o trata como sendo verdadeiramente seu filho perante o ambiente social.”
E, ainda, Eduardo de Oliveira Leite afirma que:
“… não basta ser genitor, nem educador, nem capaz de transmitir bens, mas sobretudo, o pai é aquele que estabelece um profundo vínculo amoroso com o seu filho.” (Grandes temas da atualidade, Forense, página 67)
Portanto, para se ter o “estado de filho”, deve-se se consubstanciar em três fatores: nome, tratamento e fama.
A busca do reconhecimento de vínculo de filiação socioafetiva é possível por meio de ação de investigação de paternidade ou maternidade, desde que seja verificada a posse do estado de filho, como decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A relatora no STJ, ministra Nancy Andrighi, apontou em seu voto que a filiação socioafetiva é uma construção jurisprudencial e doutrinária recente, não respaldada de modo expresso pela legislação atual. Por isso, a ação de investigação de paternidade ou maternidade socioafetiva deve ser interpretada de modo flexível, aplicando-se analogicamente as regras da filiação biológica.
“Essa aplicação, por óbvio, não pode ocorrer de forma literal, pois são hipóteses símeis, não idênticas, que requerem, no mais das vezes, ajustes ampliativos ou restritivos, sem os quais restaria inviável o uso da analogia”, explicou a ministra.
“Parte-se, aqui, da premissa que a verdade sociológica se sobrepõe à verdade biológica, pois o vínculo genético é apenas um dos informadores da filiação, não se podendo toldar o direito ao reconhecimento de determinada relação, por meio de interpretação jurídica pontual que descure do amplo sistema protetivo dos vínculos familiares” , acrescentou.
Quanto a posse do “estado de filho”, ponderou, ainda, que a “falta de um desses elementos, por si só, não sustenta a conclusão de que não exista a posse do estado de
filho, pois a fragilidade ou ausência de comprovação de um pode ser complementada pela robustez dos outros”.
Leciona MARIA BERENICE DIAS no sentido de que:
“As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade (…) Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não. Em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não biológica. O ponto essencial é que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre os pais e filhos, avós e netos. Os arranjos parentais privilegiam o vínculo da afetividade (…) A disciplina da nova filiação há que se edificar sobre os três pilares constitucionalmente fixados: a plena igualdade entre os filhos, a desvinculação do estado de filho do estado civil dos pais e a doutrina da proteção integral (…) De um lado existe uma verdade biológica, comprovável por meio de exame laboratorial que permite afirmar, com certeza praticamente absoluta, a existência de um liame biológico entre duas pessoas. De outro lado há uma verdade que não mais pode ser desprezada: o estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços de filiação construídos no cotidiano do pai e do filho, e que constitui o fundamento essencial da atribuição da paternidade ou maternidade (…) Filiação é um conceito relacional: é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas e que atribui reciprocamente direitos e deveres. Na feliz expressão de Luiz Edson Fachin, a paternidade se faz, o vínculo de paternidade não é apenas um dado, tem a natureza de se deixar construir (…) A filiação que resulta da posse do estado de filho constitui modalidade de parentesco civil de ‘outra origem’, isto é, de origem afetiva (CC 1.593) (…) A consagração da efetividade como direito fundamental subtrai a resistência em admitir a igualdade entre a filiação biológica e a socioafetiva…” (Manual de Direito das Famílias. 9a ed. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2013)
“Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, com um direito a ser alcançado. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Igualmente tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família, compondo, no dizer de Sérgio Resende de Barros, a família humana universal, cujo lar é a aldeia global, cuja base é o globo terrestre, mas cuja origem sempre será, como sempre foi, a família.” (op. cit. P. 73).
Flávio Tartuce aduz que João Baptista Villela, em trabalho intitulado Desbiologização da Paternidade, propõe que o vínculo que une pais e filhos é, principalmente, um vínculo afetivo e social, mais do que mero vínculo biológico, nos seguintes termos:
“A paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, da qual pode resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso, para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável esforço no esvaziamento biológico da paternidade…” (As verdades Parentais e a Ação Vindicatória de Filho. Anais do VI Congresso Brasileiro de Direito de Família. IBDFAM).
A propósito, Belmiro Pedro Welter criou a Teoria Tridimensional do Direito de Família, segundo a qual, o ser humano é, ao mesmo tempo, biológico, afetivo e ontológico e que, por isso, há a possibilidade de serem constituídos vários vínculos paternos.
“Não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, aos mesmo tempo, com a concessão de TODOS os efeitos jurídicos, é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na medida em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, pelo que se deve manter incólumes as duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, já que ambas fazem parte da trajetória da vida humana”; (WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional no Direito de Família: reconhecimento de todos os direitos das filiações genética e socioafetiva. Decisão comentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Revista do Ministério Público do RS no 62. Porto Alegre: Nov.2008- abr. 2009. p. 24).
Qualquer ocorrência que, por qualquer modo, altere um registro, deve se dar por averbação, o que no presente caso não é diferente. O próprio Código Civil brasileiro (Lei 10.406/2002) traz a previsão da presente averbação:
Art. 10. Far-se-á averbação em registro público:
I – das sentenças que decretarem a nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal;
II – dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação; (grifo nosso)
O ato de averbação no assento de nascimento daquele que teve reconhecida a multiparentalidade, se faz nos termos do art. 97, da Lei de Registros Públicos (BRASIL, 1973):
“Art. 97. A averbação será feita pelo oficial do cartório em que constar o assento à vista da carta de sentença, de mandado ou de petição acompanhada de certidão ou documento legal e autêntico, com audiência do Ministério Público.”
Assim, na hipótese de sentença declaratória de multiparentalidade, o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais, responsável pelo registro afetado, mediante a apresentação de mandado de averbação, lançará à margem do assento os dados do pai, nos termos da decisão judicial.
A situação de alocação de dois pais ou de duas mães no registro de nascimento não é novidade, eis que, nos casos em que a justiça autoriza a adoção por casais homoafetivos, como, por exemplo, recentemente autorizado pelo Superior Tribunal de Justiça, é essa a solução. Destaca-se, que nenhuma adjetivação no tocante a filiação deve ser feita, sob pena de se desrespeitar a Carta Magna da República, assim como a legislação infraconstitucional.
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